Junho 09, 2023
Hoje escrevo sobre um livro que terminei de ler no ínicio de maio, mas sobre o qual ainda não tinha tido oportunidade de escrever aqui.
O timing não é inocente. Ontem estive na feira do livro, para a sessão de autógrafos desta autora! Um milagre que o dilúvio tenha aguentado tempo suficiente para dar vazão à enorme fila que se formou à frente da Tinta da China.
Sempre tendi a acreditar que é melhor nunca conhecermos os nossos ídolos para evitar desilusões. Bom, neste caso estou redondamente enganada. Dulce Maria Cardoso é de uma enorme simpatia, o tipo de autora que tira uns minutos para falar com cada um dos leitores, que oferece comentário sobre as questões que levantamos - mesmo que isso implique reter a fila e estar ali o dobro das horas!
E por isso, embalada pelo entusiasmo do dia seguinte, hoje venho falar-vos da segunda obra que li dela:
Eliete é esposa, mãe, filha e neta. E leva uma vida absolutamente ordinária. Não é extraordinária no trabalho, não se destaca pela beleza, nem por qualquer outra caraterística física ou de caráter. Mas é a sua vida familiar que a começa a sufocar. E é todo esse processo interno que vamos acompanhando ao longo de 283 páginas.
Por ser um livro sobre a crise existencial de uma mulher de 40 e tal anos, temi que não fosse um livro para mim. No entanto, a escrita da Dulce Maria Cardoso tem a magia de transformar o banal em belo e de nos prender de uma forma que ficamos investidos nestas vidas alheias e normais como se de grandes feitos épicos se tratassem.
Pessoalmente, eu sou uma fã de primeiras frases. Fascina-me a forma como os autores nos conseguem agarrar (ou não) logo desde a primeira linha. Quando estou a escolher o que quero ler a seguir, esse é sempre o meu primeiro critério de eliminação. E até tenho um top de primeiras frases favoritas (diferente do meu top de favoritos).
As primeiras frases da Dulce Maria Cardoso apanham-me sempre. Afinal quem não quer ler um livro que começa por "eu sou eu e o Salazar que se foda"?
Mas confesso que comprei este livro (e li-o quase imediatamente, algo que não faço tantas vezes quando gostava) por recomendação de colegas. Acho que não conheço ninguém que o tenha lido que não o recomende, mas toda a gente me deu o mesmo aviso: esta é a parte I de uma série, que acaba num cliffhanger dramático e já passaram cinco anos sem ninguém saber quando vem o próximo.
Eu não gosto de iniciar coleções saber quando e se vai chegar a haver continuação (o principal motivo pelo qual me recuso a pegar em Game of Thrones). Mas aqui lá abri a excepção e - talvez porque tinha sido tão preparada para o que me esperava - não me importei nadinha.
Há uma certa beleza em todos os cenários que ficam em aberto neste livro. Há uma poesia na falta de resolução. E há - dizia a própria ontem na sessão de autógrafos - uma razão literária para isto. Eliete é afinal sobre os últimos momentos de uma vida antes de sabermos algo sobre nós que muda tudo!
E essa revelação transformadora não cai no céu. Todo o livro é construído com um sentido de contagem decrescente para "a noite de temporal". E está feito de tal forma que quando chegamos ao fim, e descobrimos a revelação, descobrimos que afinal os sinais estavam todos lá. Que havia pistas.
Não querendo estragar a experiência de leitura a ninguém, deixo apenas a minha passagem favorita (que na minha opinião é um grande exemplo da mestria e beleza da escrita de Dulce Maria Cardoso):
"Que chata, mãe, diziam as miúdas quando lhes contava o que existira em determinado sítio antes de elas nascerem. Reviravam os olhos, como eu os revirara quando a mamã contava o que existira antes de eu nascer. Talvez tivesse de ser assim, talvez a sobrevivência da geração seguinte determinasse a necessidade de fazer tábua rasa da anterior e de nada servisse que as gerações passadas se pusessem a contar histórias com que, muito possivelmente, mais do que salvar almas antigas de sítios, queriam salvar-se a si mesmas, histórias que suplicavam, Não nos deixem morrer, nem mesmo quandos os nossos corpos já não existirem."