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Bookish by the sea

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Livraria Acqua Alta (e a armadilha das livrarias "mais bonitas do mundo")

Cláudia, 10.11.22

Depois de um longo interregno forçado pela pandemia, voltei às viagens. Pois é! Quase três anos depois, fiz as malas e meti-me num avião. O destino desta vez foi o norte de Itália.

Como se tem tornado um hábito meu, ao preparar o itenerário decidi procurar por atrações mais livrescas que preencham o meu coraçãozinho de leitora. Uma breve busca no Google levou-me a um curioso e muito citado artigo da BBC de 2014 intitulado "As dez livrarias mais bonitas do mundo".

Sem explicar quais os critérios para esta escolha (e como gostava eu de saber como se seleciona uma lista destas a partir de milhares de livrarias que certamente existem em todo o mundo), o artigo arranca diretamente para a lista.

Um dado curioso que me saltou logo à vista foi que mais de metade da lista se situa na Europa. O segundo foi que a lista inclui alguns locais de culto bastante famosos para os booklovers como a Shakespeare & Company em Paris, a El Ateneo em Buenos Aires (na minha opinião a mais bonita da lista, empatada apenas com o nosso orgulho nacional), a Lello no Porto.

Tendo já visitado dois dos pontos na lista (quando estava de Erasmus entrei por acaso na lindíssima Polare em Maastricht) e sendo outros dois em Itália, porque não riscar os dois destinos? E assim lá fui...

Na primeira paragem, a Corso Como de Milão tive o azar de passar pela loja antes da abertura... apesar do exterior ser lindo (o letreiro que dá vibes Art Déco e a abundância são a combinação ideal para mim), as fotos do interior não me fascinam. Parece tudo demasiado branco, demasiado moderno, demasiado estéril para o meu gosto.

Assim, a "jóia da coroa" do meu mini-roteiro livresco era a Acqua Alta, em Veneza... que tal como a própria cidade foi uma valente desilusão. Não é propriamente como se pudesse dizer que não gostei das duas, mas na livraria, tal como na cidade, os efeitos do turismo em massa são demasiado fortes e destruíram o que em tempos foi uma pérola.

Hoje, a Acqua Alta deixou de ser uma livraria... assim que entramos deparamo-nos com uma fila compacta de pessoas que anda a um ritmo escruciantemente lento por entre as prateleiras atafulhadas de livros (amontoados de forma pouco cuidada!). Não há espaço nem tempo para parar, para ver livros, para apreciar o espaço. Somos empurrados para a frente, numa via de sentido único onde uma das colaboradoras da loja vai berrando indicações em italiano para avançarmos para aqui ou para ali. 

Para a direita há um corredor que leva a uma divisão atafulhada de livros em segunda mão, tudo em italiano e com uma seção de livros de autores portugueses sem autores portugueses. Pelo menos esta seção estava menos cheia, mas também pouco nos interessava perder muito tempo aqui.

Sair dali foi novamente demorado para entrar na fila que se dirige à atração principal: uma escada feita de livros velhos, periclitante, mole e que dá a sensação que poderá colapsar a todo o momento. Tudo isto para ver por cima do muro para o canal (que não tem nada de distintivo de tantas outras dezenas de canais em Veneza, menos ainda depois do pôr do sol que foi a hora da minha visita e já não se via NADA)...

Mesmo neste ponto, pouco mais dá para fazer do que subir e descer logo a seguir. Não há tempo para fotos, para parar, respirar, ver. A única foto que consegui tirar foi um close-up desfocado com os livros desfeitos e pés de desconhecidos.

Acqua Alta.jpeg

A via de sentido obrigatório leva-nos a uma segunda porta de saída que nem passa na caixa, ilustrando assim perfeitamente que este já não é uma livraria para comprar livros. Para fazer a minha aquisição, um dos poucos títulos em inglês disponíveis, tive de dar a volta para chegar novamente à entrada e pegar no livro que desejava ("Morte em Venez" de Thomas Mann - porque comprar livros passados na cidade é sempre o melhor souvenier).

Na caixa fui ignorada pelas colaboradoras (uma delas a mesma que berrou indicações para a fila) durante um bom bocado. Mesmo depois de repararem em mim, continuaram a sua conversa em italiano. Quando finalmente decidiram deixar-me pagar, mal olharam para mim e continuaram a falar entre elas, incluindo julgando-me pela minha compra. Assumindo que eu não percebia nada do que estavam a dizer, uma delas estranhou o livro ser tão caro e a outra justificou ser um livro em inglês. Para nota, o livro - esta coletania - ficou mais barato do que se tivesse comprado em Portugal.

Nem tudo é totalmente mau... na Acqua Alta a entrada é gratuita. Para mérito desta livraria, têm um gato muito adorável que estava a comer o seu fedorento paté de peixe no balcão, tão alheio à multidão como as colaboradoras estavam determinadas a ignorar a minha presença. E claro, a história também é interessante: afinal não é todos os dias em que visitamos uma livraria pronta para ser inundada, com livros dentro de barcos e banheiras para não ficarem danificados pelas inevitáveis marés altas que dão nome a este lugar.

Mas no geral, toda esta experiência foi incrivelmente claustrofóbica e uma profunda desilusão.

O que me faz pensar sobre estas listas e o impacto negativo que esta popularidade claramente acarreta...

Há alguns anos que não entro na Lello, mas também lá o espaço está cheio de visitantes com pouca apreciação por livros e ainda menos interesse em comprar. Mesmo para estas pessoas, a visita é frustrante porque todas as fotos estarão inevitavelmente cravadas de desconhecidos. Já para quem quer parar e procurar alguma coisa, a experiência é simplesmente horrível... sentimo-nos precionados pela multidão, apressados e torna-se simplesmente mais fácil não comprar nada.

Por muito bonitas que sejam, estas duas livrarias estão tão cheias de pessoas que parecem esvaziadas do amor aos livros que em tempos povoou as suas estantes. Entrar nestes espaços deixa-me com uma profunda tristeza por espaços que em tempos eram verdadeiros templos à leitura e hoje são locais tão desfigurados pelo turismo que perderam o seu sentido.

 

(ps - Talvez por não ser tão conhecida, a minha experiência na livraria de Maastrich não foi nada assim. Embora bastante cheia, havia espaço para parar, apreciar a arquitetura e particularidades do espaço, ver livros, ler contracapas e decidir comprar)